Ibrahim Traoré e o Novo Pan-Africanismo: O Desafio à Ordem Geopolítica em Burkina Faso e no Sahel
- Márcia Oliveira
- 30 de mai.
- 9 min de leitura
Burkina Faso é um país sem litoral localizado na África Ocidental. Faz fronteira com o Mali ao norte, Níger a leste, Benin ao sudeste, Togo e Gana ao sul, e a Costa do Marfim a sudoeste. A capital, Ouagadougou, é o centro cultural e econômico desse país do Sahel que é o quinto maior produtor de ouro na África.

Instabilidade Política Prolongada
Burkina Faso tem enfrentado instabilidade política prolongada, marcada por golpes de estado e conflitos internos. A região do Sahel, onde o país está localizado, sofre com a atividade de grupos jihadistas, exacerbando a insegurança e os desafios políticos. O aumento da influência desses grupos está relacionado a diversos fatores interconectados:
Propagação e Adaptação do Extremismo: Grupos como o Jama'at Nasr al-Islam wal Muslimin (JNIM), afiliado à Al-Qaeda, e o Estado Islâmico no Grande Saara (ISGS), afiliado ao Estado Islâmico, expandiram suas atividades na região. A capacidade desses grupos de se adaptarem aos contextos locais e forjar alianças táticas com grupos comunitários ou criminais tem sido crucial para sua resiliência; no último dia 11 de maio de 2025, por exemplo, o Jama'at Nasr al-Islam wal Muslimin (JNIM) anunciou ter matado 200 militares de Burkina Faso durante uma ofensiva contra forças locais do país, governado por uma junta militar liderada por Ibrahim Traoré desde setembro de 2022. Os ataques aconteceram na cidade de Djibo. (veja mais em: https://www.metropoles.com/mundo/grupo-filiado-a-al-qaeda-diz-ter-matado-200-militares-em-burkina-faso). Burkina Faso está no topo da lista dos países onde o terrorismo tem causado mais mortes no globo de acordo com o Global Terrorism Index (descubra mais em: https://reliefweb.int/report/world/global-terrorism-index-2025).
Exploração de Conflitos Intercomunitários: Os jihadistas salafistas frequentemente se inserem e exacerbam tensões étnicas e socioeconômicas preexistentes. Eles instrumentalizam disputas por terra, água ou recursos, muitas vezes polarizando comunidades ao se aliar a um grupo específico contra outro. É a tática de “dividir para reinar”.
Limitações das Operações Militares e de Segurança: Operações conjuntas de forças locais e internacionais (como a força conjunta do G5 Sahel e missões da ONU) com o objetivo de conter as insurgências têm sido limitados. Além disso, relatos de abusos de direitos humanos por parte das forças de segurança estatais e internacionais minam a confiança da população local.
Grave Impacto Humanitário e Socioeconômico: A violência continuada e a instabilidade resultaram em uma crise humanitária de proporções alarmantes. Milhões de pessoas foram forçadas a abandonar suas casas, tornando-se deslocados internos, com acesso limitado a alimentos, água, abrigo e serviços básicos.
A chamada “Guerra do Sahel” que destroça não só Burkina Faso, mas também países vizinhos, é um conflito complexo e multifacetado, marcado por um ciclo vicioso de violência, instabilidade política e crise humanitária, alimentado pela dinâmica complexa do extremismo jihadista que se enraíza em falhas estruturais profundas dos Estados e em tensões sociais e econômicas não resolvidas na região.
Um Panorama sobre a Região do Sahel

O Sahel, uma região de transição no continente africano, representa um dos maiores desafios humanitários e ambientais do nosso tempo, ao mesmo tempo em que possui uma rica história e diversidade cultural. Geograficamente, trata-se de uma vasta faixa semiárida que serve como uma zona de transição biogeográfica crucial entre o deserto do Saara, ao norte, e as savanas mais férteis e as florestas da África Subsaariana, ao sul. Sua localização estratégica o torna uma região de significativa importância geopolítica.
1. Localização Geográfica e Países: Estendendo-se por cerca de 5.400 quilômetros de leste a oeste, do Oceano Atlântico ao Mar Vermelho, o Sahel abrange partes de diversos países. Os que são mais comumente associados e que têm a maior parte de seus territórios na região, enfrentando seus desafios de forma mais aguda, são: Senegal, Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Níger, Nigéria (extremo norte), Chade, Sudão, Eritreia, Djibouti, Etiópia (partes do norte, especialmente as terras baixas do leste). A interconexão desses países levou à formação de blocos como o G5 Sahel (Burkina Faso, Chade, Mali, Mauritânia e Níger), focado na cooperação em segurança e desenvolvimento.
2. Características Climáticas e Ambientais: O clima do Sahel é semiárido – classificação climática de Köppen-Geiger (veja mais em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Classifica%C3%A7%C3%A3o_clim%C3%A1tica_de_K%C3%B6ppen-Geiger) – caracterizado por uma estação seca prolongada (de 9 a 11 meses) e uma estação chuvosa curta, irregular e cada vez mais imprevisível. As temperaturas são elevadas durante todo o ano, com picos extremos que exacerbam a evaporação e o heat stress em humanos e animais. Essa vulnerabilidade climática o torna extremamente suscetível a eventos extremos e processos de degradação: secas prolongadas, desertificação, variações de temperatura.
3. Desafios Socioeconômicos e Políticos Enfrentados: Apesar de sua rica diversidade cultural e vastos recursos naturais em algumas áreas (como minerais), o Sahel enfrenta múltiplos desafios interligados que criam um ciclo vicioso de instabilidade e subdesenvolvimento:
· Pobreza extrema e insegurança alimentar: Uma parcela significativa da população vive na pobreza, com acesso limitado a fontes consistentes de alimentos.
· Conflitos e insegurança: Conflitos contínuos, frequentemente alimentados por grupos extremistas, deslocam populações e interrompem os meios de subsistência.
· Governança fraca e corrupção: Essas questões dificultam a prestação eficaz de serviços públicos e a gestão de recursos.
· Crescimento demográfico rápido: Uma população em rápido crescimento exerce uma imensa pressão sobre recursos e serviços já escassos.
4. Iniciativas para Desenvolvimento Sustentável e Gestão Ambiental: Para enfrentar esses desafios complexos e interligados, diversas iniciativas, tanto locais quanto internacionais, estão em andamento, buscando construir resiliência e promover o desenvolvimento sustentável; destaca-se: a grande muralha verde, um projeto transcontinental que não é apenas sobre plantar árvores, mas sim um programa holístico de restauração de terras e desenvolvimento rural. (veja mais em: Great Green Wall – GGW) https://thegreatgreenwall.org/about-great-green-wall?fbclid=IwY2xjawKetlJleHRuA2FlbQIxMABicmlkETFrT0tINzNmcmNTOWxVWlRIAR5Et7e8kRQE16_WqwfOFAU3pIWCHC99PmY8J2l_EDGeuDvNrR7Nn4vjnRMfEg_aem_am_UhHYJ6QJNP-WuC0VOlw
O Sahel é, portanto, uma região de extrema importância, onde a luta contra as mudanças climáticas, a pobreza e a insegurança se entrelaçam com a resiliência, a inovação e a busca por um futuro mais próspero e autônomo para seus povos.
O Fenômeno Ibrahim Traoré
A ascensão de Ibrahim Traoré ao poder em Burkina Faso, em um cenário de instabilidade crônica e desafios multifacetados no Sahel, rapidamente o posicionou como uma figura central e, para muitos, um novo símbolo do panafricanismo (leia mais sobre panafricanismo em: https://www.gov.br/palmares/pt-br/assuntos/noticias/pan-africanismo-o-conceito-que-mudou-a-historia-do-negro-no-mundo-contemporaneo#:~:text=no%20mundo%20contempor%C3%A2neo-,Pan%2Dafricanismo%3A%20o%20conceito%20que%20mudou%20a%20hist%C3%B3ria,do%20negro%20no%20mundo%20contempor%C3%A2neo&text=A%20ideologia%20Pan%2Dafricanista%20surgiu,contra%20a%20violenta%20segrega%C3%A7%C3%A3o%20racial).

Com apenas 34 anos quando assumiu a liderança interina em 2022, Traoré personifica uma geração de líderes africanos, predominantemente militares, que propõem uma ruptura drástica com as dinâmicas geopolíticas tradicionais. Essa ruptura visa desmantelar as estruturas neocoloniais percebidas e buscar uma maior autonomia e soberania para o continente. As visões e ações de Traoré, especialmente no Sahel, têm gerado reações diversas e impactado profundamente as relações internacionais, moldando a percepção de um “novo” panafricanismo focado na soberania irrestrita, no empoderamento local e na redefinição de parcerias externas.
Perfil e Trajetória
Ibrahim Traoré, nascido em 1988, é um capitão do exército burquinense que se tornou líder de um golpe de Estado em setembro de 2022, derrubando o então presidente interino Paul-Henri Sandaogo Damiba, em cujo golpe, Traoré foi participante em janeiro de 2022. Sua trajetória é marcada por uma ascensão meteórica, impulsionada pela frustração generalizada da população e das forças armadas com a ineficácia do governo anterior em combater a insurgência jihadista que assola o país. Essa frustração se manifestava em ataques frequentes, deslocamento interno de milhões de pessoas e a percepção de uma resposta inadequada do Estado. Traoré emergiu como a face de uma juventude militar que promete uma abordagem mais direta, “inovadora” e autônoma para a segurança e o desenvolvimento de Burkina Faso. Sua simplicidade aparente, o uso de fardas militares em aparições públicas e discursos nacionalistas e diretos rapidamente angariaram apoio popular, especialmente entre os jovens, que se sentem representados por sua postura desafiadora.
Visão Panafricanista
A retórica de Traoré ressoa fortemente com os ideais panafricanistas, mas com uma roupagem adaptada aos desafios contemporâneos e uma ênfase particular na soberania plena. Ele frequentemente enfatiza a necessidade de Burkina Faso e, por extensão, de toda a África, assumirem o controle de seus próprios destinos, longe da influência e dependência de potências estrangeiras, especialmente as ocidentais. Seus discursos defendem a soberania em três pilares:
Soberania Econômica: Implica o controle total sobre os recursos naturais de Burkina Faso (como ouro e manganês), a renegociação de acordos comerciais considerados desiguais, a promoção da industrialização local e a redução da dependência de ajuda externa e empréstimos condicionados. (https://pmldaily.com/africa/2025/01/president-ibrahim-traores-transformational-two-years-a-new-era-for-burkina-faso.html).
Soberania Militar: Foca na autossuficiência em defesa, no treinamento e equipamento das forças armadas locais, e na eliminação de bases militares estrangeiras ou a redução da presença de tropas externas, buscando uma abordagem de segurança liderada por africanos.
Soberania Cultural: Promove a valorização das línguas, tradições e sistemas educacionais africanos, combatendo o que é percebido como uma hegemonia cultural ocidental.
Vídeos diversos na internet que exaltam os feitos de Traoré têm viralizado no continente africano e fora dele, como esses:
A Liderança de Traoré: um terreno vasto para a disseminação de fake News:
Infelizmente, a liderança de Traoré tem sido um terreno fértil para a disseminação de desinformação e fake news, muitas vezes impulsionadas por narrativas geopolíticas complexas. Um exemplo notório foi um vídeo recente falsamente atribuído ao Papa Leão XIV em que o pontífice supostamente elogiava Traoré e seu governo. (veja sobre isso em: https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2025/05/21/e-fake-que-papa-leao-xiv-discursou-em-apoio-a-ditadura-na-africa-conteudo-foi-gerado-por-inteligencia-artificial.ghtml). Este incidente ilustra como atores interessados, tanto internos (opositores políticos, grupos com agendas específicas) quanto externos (potências estrangeiras buscando influenciar a opinião pública, grupos mercenários de informação), podem manipular informações para influenciar a percepção pública. A construção dessas narrativas pode envolver o uso de deepfakes, edição de vídeos fora de contexto, ou a criação de conteúdo totalmente fabricado.
Impactos da Desinformação: As consequências dessas notícias falsas para a imagem de Traoré e a percepção pública de sua liderança são multifacetadas e perigosas. Por um lado, podem fortalecer o apoio entre seus partidários, que veem qualquer crítica como parte de uma conspiração externa ou uma campanha de descredibilização. Por outro lado, podem erodir a confiança em sua liderança entre setores mais críticos da população ou na comunidade internacional, que passam a questionar a credibilidade das informações que circulam sobre ele e seu governo. Além disso, narrativas falsas podem ser instrumentalizadas para justificar intervenções externas, sanções econômicas ou mesmo a deslegitimação de governos, complicando ainda mais o já complexo cenário de Burkina Faso e do Sahel.
Análise Geopolítica: Um cenário em transformação
A ascensão de Ibrahim Traoré e sua postura panafricanista, que frequentemente inclui críticas abertas à França e à presença militar ocidental na região, têm sido recebidas com relutância, preocupação e, em alguns casos, condenação por algumas potências ocidentais.
Historicamente, países como a França mantêm laços econômicos e estratégicos profundos no Sahel, incluindo: a exploração de recursos naturais estratégicos (como urânio no Níger, vizinho de Burkina Faso, e ouro em Burkina Faso); uma presença militar significativa para combate ao terrorismo (como a Operação Barkhane e a Força-Tarefa Takuba, que foram encerradas sob pressão dos novos governos); uma influência política considerável.
A retórica antiocidental de Traoré, em conjunto com a aproximação de Burkina Faso a outros atores como a Rússia (especialmente no setor de segurança e militar) e a China (para investimentos em infraestrutura), é vista como uma ameaça direta aos interesses estabelecidos e à estabilidade regional, conforme a ótica ocidental.
Impacto nas Relações Internacionais: A nova liderança de Traoré e o ressurgimento do panafricanismo com um viés de soberania radical têm o potencial de remodelar significativamente as relações internacionais na região do Sahel e no continente africano como um todo. Isso pode levar a um realinhamento de alianças, com países do Sahel buscando parcerias alternativas e menos dependentes do Ocidente, como já se observa com a intensificação das relações com a Rússia para apoio militar e com a China para desenvolvimento econômico. Isso, por sua vez, pode influenciar a política regional, incentivando outros países a adotarem posturas semelhantes ou a reavaliarem suas próprias relações como ex-colônias. A instabilidade em Burkina Faso e a postura de Traoré também geraram tensões com organizações regionais como a CEDEAO (Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental), que impôs sanções e pressionou por uma transição mais rápida para governos civis. Em resposta, Burkina Faso, Mali e Níger formaram a Aliança dos Estados do Sahel (AES), uma organização de defesa mútua que representa um desafio direto à autoridade da CEDEAO e sinaliza uma nova era de blocos regionais com ideologias distintas.
Concluindo

Fonte: https://simple.wikipedia.org/wiki/Ibrahim_Traor%C3%A9#:~:text=%E2%86%91%20AFP%20(6%20de%20outubro,do%20mundo.%22%20The%20Hindu%20.
Ibrahim Traoré emergiu como uma figura controversa e carismática, catalisando um “novo” panafricanismo que prioriza a soberania e a autonomia africana em um cenário geopolítico complexo e em rápida transformação. Embora sua ascensão seja vista por muitos como uma resposta legítima às frustrações populares e à ineficácia de governos anteriores em lidar com a crise de segurança e desenvolvimento, ela também se insere em um ambiente onde a desinformação prolifera e as grandes potências demonstram claro desagrado com a mudança de paradigma.
A retórica de Traoré, focada na autodeterminação e no afastamento de influências externas, desafia o status quo e tem o potencial de remodelar as dinâmicas de poder no Sahel e nas relações internacionais do continente. O futuro da região dependerá não apenas da capacidade de líderes como Traoré de entregar resultados concretos em segurança e desenvolvimento, mas também da forma como a comunidade internacional se adaptará a essa nova onda de nacionalismo e busca por soberania africana. A tensão entre a aspiração à autonomia e os interesses geopolíticos globais provavelmente continuará a definir o panorama do Sahel e o papel do novo panafricanismo nos próximos anos, com implicações significativas para a estabilidade regional e a ordem internacional.
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